João e José eram amigos de infância. Na adolescência, muito acamparam na praia das Tunas. Mas como o tempo nada perdoa, cada um seguiu seu destino. João se formou em Agronomia. Foi para o exterior, viajou muito. Progrediu. José, que sempre foi um boêmio, preferiu ficar por Restinga, fazendo bicos, puxando saco de político e conseguindo umas mamatas aqui e ali. Naquele ano, excepcionalmente, conseguiu uma boca no Candeeiro da Canção Nativa, festival que acontece na cidade, como carregador de instrumentos. Foi nessa época que João regressou à cidade natal. Depois de doze anos, voltava e, por sinal, muito bem acompanhado da esposa, Charlotte. Mulher bela, logo chamou a atenção de todos na pequena cidade. No reencontro dos amigos, durante o festival, a amizade se renovou e junto com ela, o interesse nada discreto de José. Entre uma música e outra, os olhares do casal se cruzavam e, no final, ficou evidente uma grande atração entre eles. João e Charlotte vieram para uma temporada de dois meses, porém a decisão de fixar residência foi incentivada pelo amigo e, claro, pela jovem senhora.
Depois disso, não deu outra: estava formado o triângulo. A paixão entre os dois era tão intensa que pouco se preocupavam com a discrição. Até viajavam juntos para a cidade vizinha, Santa Maria, com a desculpa de que Charlotte precisava de roupas de grife, perfumes importados ou porque sentia saudades dos shoppings. Como João estava atarefado com o trabalho nas fazendas da região, não se importava e até incentivava a companhia do amigo.
Numa dessas idas a Santa Maria, passaram diante de um bazar chamado “A cigana” e a jovem enamorada fez questão de chegar. Deslumbrada pelos objetos, velas, incensos, bijuterias, foi até o balcão. A vendedora, que usava vestido e ornamentos ciganos, perguntou:
- Boa tarde. Deseja algo?
- Por favor, a senhora pratica a quiromancia?
José se assustou e cutucou Charlotte. Esta nem ligou e aguardou a resposta da cigana.
- Sim. Esmeralda vê passado, presente e futuro. Queres uma consulta?
- Com certeza. Agora mesmo se puder. Fique aqui, José não quero que descubras meus segredos... – disse Charlotte, dando uma risadinha irônica ao amante.
- Que remédio... – deu de ombros o rapaz.
Enquanto a jovem consultava, ele passou os olhos pela loja. Havia livros diversos; a grande maioria, religiosos. Um lhe chamou a atenção por destoar de todo o resto: Contos de Machado de Assis. Começou a folheá-lo. E novamente sua atenção foi despertada, no entanto por um título em especial: “A cartomante”. Um calafrio percorreu seus ossos. Lembrava daquela história. Lera no ensino médio e inclusive, apresentara um trabalho na aula de Literatura sobre ele. Lembrava, principalmente de como terminava. “Nossa! Como fui rever essa história depois de tanto tempo? Quer saber: há mais mistérios entre o céu e a Terra que eu não quero ir para o inferno... Tô indo nessa... Não tem tesão que possa destruir uma amizade de tantos anos.”
Nesse momento, Charlotte aparece pálida e percebe também a palidez do rapaz.
- José, não é por nada, mas acho que não podemos mais ficar juntos... Sabe, a cigana...
- Tudo bem, Charlotte, tudo bem. Também acho que estamos precisando dar um tempo. E quer saber: volte para Restinga agora e vá ser feliz. Por que eu tô indo, ou melhor, fui!!!!!
E o rapaz saiu da loja, deixando a jovem entre surpresa e decepcionada:
- Achei que ele fosse implorar para ficarmos juntos!!!
E saiu chorando porta a fora. A cigana olhou e balançou os ombros:
- Eu, hein! É cada um que me aparece... “Quanto mais eu rezo, ...
E voltou a atender o balcão, pois mais uma cliente entrara na loja.
- Boa tarde. A senhora põe cartas?